Foto: Pensar Energia/Divulgação
Marcos Cintra, do Instituto Pensar Energia: “A abertura completa do mercado livre traria mais eficiência e competitividade ao setor”
Crédito de Carbono

“NÃO PODEMOS NOS TORNAR IMPORTADORES DE CRÉDITO DE CARBONO”

Em entrevista, Marcos Cintra explica por que o Brasil está na iminência de ser importador de créditos de carbono

REDAÇÃO
COMPARTILHE:

Aprovado pela Câmara dos Deputados no final de 2023, o Projeto de Lei 2.148/15 pode entrar na pauta de discussões do Senado Federal nas próximas semanas. Apesar de trazer atualizações importantes e necessárias para o melhor desenvolvimento de uma economia verde e de baixo carbono, existem pontos importantes que precisam ser aprimorados em relação ao texto aprovado pelos deputados no ano passado. O problema é tão grande que, mesmo com um imenso potencial florestal e de produção de energias renováveis, o Brasil poderia eventualmente se tornar um importador de créditos de carbono no contexto mundial.

Na prática, o projeto de lei propõe a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Inspirado em sistemas semelhantes já adotados por países da União Europeia e em algumas regiões dos Estados Unidos, ele estabelece um mercado de carbono no qual empresas com altos níveis de emissões de gases de efeito estufa poderão negociar créditos de carbono. Esses créditos são atribuídos às empresas que conseguirem reduzir suas emissões além das metas estabelecidas, permitindo que aquelas que não conseguirem atingir seus objetivos possam comprar créditos para compensar o excesso.

O governo argumenta que o PL 2.148/15 representa um passo decisivo para o cumprimento das metas climáticas assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris e durante a COP 26, em Glasgow. A criação do SBCE é vista como uma forma de estimular a transição para uma economia de baixo carbono, promovendo inovações tecnológicas e a sustentabilidade no setor produtivo. Com a 30ª Conferência das Partes (COP 30) se aproximando, líderes do governo esperam aprovar o projeto de lei antes do evento, com o objetivo de consolidar a posição do Brasil como um ator relevante na agenda climática global.

Entretanto, o projeto também enfrenta resistência de alguns setores industriais, que expressam preocupações sobre os custos adicionais que podem ser gerados pelo novo sistema de comércio de emissões. Para os críticos, o PL cria um imposto de carbono disfarçado. Eles apontam que a introdução de um mercado de carbono pode representar um desafio significativo para a competitividade de empresas brasileiras, especialmente aquelas que operam em setores intensivos em emissões, como siderurgia e cimento.

Além disso, há um debate sobre a complexidade da implementação do SBCE, que exigirá um sistema robusto de monitoramento, relato e verificação de emissões, além de mecanismos eficazes de governança para evitar fraudes e garantir a integridade ambiental do mercado.

Esse diagnóstico é compartilhado por vários especialistas, entre eles Marcos da Costa Cintra, um experiente profissional do setor de energia, com mais de 20 anos de atuação em cargos de liderança em empresas e instituições do setor. Ele é presidente do Instituto Pensar Energia, um think tank criado para promover o diálogo entre os diversos segmentos da sociedade e do setor energético brasileiro, com foco na segurança, na integração e na transição energética justa.

Jornalista de formação, Cintra possui uma trajetória acadêmica robusta, com doutorado em Energia pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de especializações em petróleo e gás e gestão em energia. Atualmente, ocupa o cargo de Head de Relações Institucionais da Eneva, onde lidera o relacionamento com órgãos governamentais e entidades do setor. Sua carreira inclui passagens por empresas como Tenaris/Grupo Techint e Petra Energia, além de experiência em consultoria e na administração pública, onde atuou como assessor da diretoria na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Cintra também é conhecido por seu papel ativo em conselhos e comitês importantes, como o Comitê Óleo e Gás da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Além de sua atuação técnica e institucional, Cintra é um articulista frequente, publicando análises sobre energia, políticas públicas e economia em veículos de grande circulação, como Valor Econômico, Poder 360 e EPBR.

Em entrevista ao Valor da Energia, Marcos Cintra alerta para o contexto do projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil. Confira:

Quais os principais aspectos que estão em jogo nas discussões sobre a implementação do mercado de carbono no mundo? 

As discussões globais sobre o mercado de carbono giram em torno de como equilibrar a necessidade urgente de redução de emissões com o impacto econômico dessas medidas nos países. A União Europeia, que está capitaneando grande parte dessas discussões e hoje é o principal comprador de créditos de carbono do mundo, criou regras que permitem a venda de resultados de redução de emissões somente por pequenos países insulares e países de menor desenvolvimento relativo, o que exclui o Brasil, que gerou créditos de carbono com o antigo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

Com a proibição da venda do MDL na Europa e os diversos custos e obstáculos adicionais introduzidos pela regulamentação dos mecanismos de mercado do Acordo de Paris, há uma desaceleração brutal, praticamente inibição do mercado internacional de carbono regulado. 

Além disso, há o critério da adicionalidade. Ou seja, projetos já estabelecidos e operando, não são elegíveis para gerar créditos. A regra considera que eles não reduzem “adicionalmente” a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Isso restringe o potencial do Brasil de explorar esses recursos para créditos de carbono sem implementação de novas iniciativas ou melhorias significativas além das práticas existentes.

"O Brasil tem potencial significativo para ser líder no mercado de crédito de carbono, mas as regras do Acordo de Paris e da União Europeia restringem severamente que esse potencial possa ser materializado."

Marcos Cintra

Presidente do Instituto Pensar Energia

Como o Brasil tem se posicionado em relação a esses aspectos?

O Brasil tem um potencial significativo para ser um líder no mercado de crédito de carbono, dada sua capacidade de redução de emissões em vários setores, mas as regras do Acordo de Paris e da União Europeia restringem severamente que esse potencial possa ser materializado, ao contrário daquilo que ocorreu com o Protocolo de Quioto e o MDL. 

Somado a esse comprometimento hesitante dos países desenvolvidos, o país está na iminência de conceber leis que oneram o cidadão e tiram a competitividade do Brasil. É o caso do Projeto de Lei 2.148/15, que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), já aprovado na Câmara e prestes a ser votado no Senado. Se tal cenário se concretizar o país vai se tornar importador de créditos de carbono.

Por que o Brasil poderá se tornar importador?

Em um cenário de aprovação do Projeto de Lei 2148/15 tal como se encontra, essas restrições internacionais, juntamente com a demanda interna que pode exceder a oferta de créditos de carbono disponíveis devido ao desmatamento e outras emissões não mitigadas, podem, paradoxalmente, tornar o Brasil um importador líquido de créditos de carbono de outros países para cumprir com compromissos internacionais como os estabelecidos no Acordo de Paris.

Se os níveis de desmatamento no Brasil continuarem a crescer, isso não só contribuirá diretamente para o aumento das emissões de gases de efeito estufa, mas também poderá levar a uma “dívida externa de carbono”. Isso ocorre porque o desmatamento elevado reduz a capacidade do país de oferecer créditos de carbono no mercado internacional, forçando-o a adquirir créditos de outras nações para cumprir suas obrigações internacionais, criando uma espécie de dívida em carbono.

Há outros impactos que seriam trazidos com a aprovação do PL 2.148/15? Como eliminar os entraves?

A implementação do mercado de carbono no Brasil, conforme proposta no projeto que tramita no Congresso, apresenta desafios significativos. Do jeito que está, o mercado se concentraria apenas nos setores de energia e indústria, que representam cerca de 30% das emissões de gases de efeito estufa no país. 

Tal situação cria um problema de eficácia e justiça, já que outros setores com grandes emissões ficariam de fora. Além disso, a regulamentação imposta poderia gerar um aumento nos custos operacionais, o que, por sua vez, impactaria a inflação e o Custo Brasil. 

Para eliminar esses entraves, é essencial que o marco regulatório seja revisado para incluir todos os setores econômicos, promovendo a transparência e a eficiência das transações de carbono. Também é necessário que o Brasil alinhe suas políticas com as regras internacionais de forma que nossos créditos de carbono não sejam desvalorizados no mercado global.

Quais são as grandes oportunidades e como o Brasil pode aproveitá-las na implementação do mercado de carbono?

O Brasil, historicamente, tem sido um protagonista nas questões ambientais, desde a ECO-92 até as recentes conferências do clima. Dados do World Bank indicam que o Brasil é um dos países que mais reduzem emissões devido ao seu setor de energia renovável e projetos de reflorestamento, mas isso não tem sido remunerado. A capacidade do Brasil em gerar créditos de carbono já foi demonstrada anteriormente, quando o país se tornou um dos principais exportadores de Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) sob o Protocolo de Quioto, especialmente durante o período entre 2003 e 2010.

Aproveitar essas oportunidades requer um marco regulatório bem estruturado, que não só incentive a redução de emissões, mas também valorize as ações de redução de gases de efeito estufa que o país vem desenvolvendo ao longo de sua história. É crucial que o país estabeleça uma política que evite a desvalorização dos créditos de carbono brasileiros e que negocie de forma estratégica nas instâncias internacionais para garantir que esses créditos sejam valorizados nos mercados globais.

Além disso, o Brasil pode se beneficiar da exportação de tecnologia e expertise em transição energética, áreas em que já possuímos um know-how significativo. 

Em relação ao setor de energia, como vê o papel das fontes fósseis no cenário de transição energética e o que o país deve fazer para aproveitar adequadamente esse potencial?

Apesar de estarmos em um cenário de transição energética, em que as energias renováveis ganham cada vez mais protagonismo, as fontes fósseis ainda desempenham um papel crucial. No Brasil, onde a matriz energética já é majoritariamente renovável, a utilização de fontes fósseis, como o gás natural, pode ser estratégica, principalmente como uma solução de transição para mitigar a intermitência das renováveis. Além disso, é importante se observar no cenário internacional que países cujo potencial energético está baseado em fontes fósseis não estão abrindo mão desse potencial em nome da agenda climática. Isso mostra que a transição energética precisa de coordenação e capacidade de enforcement para que seja um movimento que vá além dos discursos, que não se restrinja a uma plataforma de política comercial dos países ricos.  

Para aproveitar seu potencial de forma ambientalmente sustentável, o Brasil deve focar em tecnologias que permitam a redução das emissões associadas ao uso dessas fontes, como a captura e o armazenamento de carbono. Além disso, o Brasil deve continuar a investir em inovação e na diversificação da matriz energética, garantindo que a transição para fontes renováveis ocorra de maneira equilibrada e sem comprometer a segurança energética.

E isso conversa diretamente com o mercado de carbono, certo?

Sim, é fundamental que o Brasil adote uma abordagem equilibrada e estratégica também na transição para um mercado de carbono. A criação de um sistema robusto e justo pode não apenas posicionar o país como um líder global em sustentabilidade, mas também abrir novas oportunidades econômicas. No entanto, é crucial que as políticas sejam desenvolvidas com uma visão de longo prazo, considerando as particularidades do setor energético brasileiro e a necessidade de manter nossa competitividade internacional.

Além disso, é fundamental que o Brasil continue a se engajar ativamente nas discussões globais sobre mudanças climáticas, defendendo seus interesses e assegurando que nossos créditos de carbono sejam reconhecidos e valorizados. A transição energética é uma oportunidade única para alavancar o desenvolvimento sustentável, e o país tem todos os recursos necessários para liderar esse movimento, desde que as políticas sejam bem estruturadas e inclusivas.

Se você percebeu erro no texto, nos ajude e melhorar. Desde já agradecemos sua participação. Clique aqui.

    ERRAMOS: Se você percebeu erro no texto, nos ajude e melhorar. Desde já agradecemos sua participação.

    Leia também