INCERTEZAS MARCAM LANÇAMENTO DO GÁS PARA EMPREGAR
Setor produtivo recebeu proposta com pessimismo, mas beneficiários da nova política se empolgaram com decreto
As primeiras impressões sobre o programa “Gás para Empregar” ficaram longe de alcançar a unanimidade no setor energético. A proposta do governo, que busca aumentar a oferta de gás natural e reduzir o preço para o consumidor final, foi recebida com muito pessimismo pelo setor produtivo de gás, que evitou comentar publicamente suas impressões sobre a proposta. Por outro lado, associações que potencialmente se beneficiarão das medidas elogiaram o decreto.
Segundo os críticos, a medida traz lembranças a intervenções feitas pelo governo no passado, como a MP 579, editada em 2012 e que desestruturou o setor de energia elétrica em troca de uma falsa promessa de queda na conta de luz. O temor é que a ação intervencionista crie um efeito contrário ao que busca o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Palácio do Planalto, afastando a livre concorrência e, por consequência, reduzindo a oferta de gás.
Para Karina Santos, advogada da área de Sustentabilidade Corporativa do Gaia Silva Gaede Advogados, o decreto dessa semana tem um paralelo com a MP 579: ambas são tentativas equivocadas de baratear preços.
“Eu entendo que ambas as medidas não o fazem da forma mais adequada. A gente não pode ter uma remodelagem de um setor via decreto. Isso deveria ser feito via lei, deveria observar os atos jurídicos perfeitos e ser debatido com os players do mercado, que recebem essas normas que foram publicadas hoje com bastante preocupação”, avalia Karina.
Ela explica que o decreto do Gás para Empregar empodera a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para firmar um instrumento chamado Termo de Ajustamento de Conduta caso o regulador identifique indícios ou medidas que dificultem a abertura desse mercado e a liquidez dele. O problema é que isso valeria também para contratos de médio e longo prazo já vigentes, que consideraram planos de negócios estabelecidos sob outro marco regulatório.
“Quando falamos de uma regulação superveniente, que é o que está acontecendo, os contratos precisam se adequar a evolução regulatória, mas não dessa forma”.
Karina Santos
senior manager da área de Sustentabilidade Corporativa da Gaia Silva Gaede AdvogadosO economista Cláudio Frischtak, presidente da consultoria InterB, destaca que, apesar de a medida estimular o mercado de gás, seu impacto é bastante limitado. Em sua visão, os recursos seriam mais efetivos se focassem em estímulo a investimentos no setor. “Iniciativas voltadas ao incentivo ao consumo, embora sejam mais fáceis de implementar e de resultados em tese imediatos, no longo prazo, são bem menos efetivas para o crescimento desse mercado”, diz.
Alexandre Calmon, sócio da área de Energia e Recursos Naturais do escritório Campos Mello Advogados, lembra que o decreto é fruto de um grupo de trabalho criado no ano passado pelo MME e que a proposta apresentada pelo governo pode trazer avanços na agenda regulatória e destravar investimentos.
Ele lembra que um dos pontos do decreto trata da redução da reinjeção nos campos offshore. “Caberá à Empresa de Pesquisa Energética (EPE), com seus estudos técnicos, mostrar é possível produzir e distribuir gás de forma competitiva sem motivo para reinjeção”, aponta Calmon.
“É natural haver críticas e até rejeição do mercado porque não havia qualquer regra para redução da injeção e agora haverá. Mas a proposta do MME segue uma lógica econômica e terá por base critérios técnicos”, afirma.
“Pode haver discussão sobre os limites do decreto – o documento não pode contrariar ou extrapolar o que é definido por lei – mas há que se considerar que os princípios da lei do gás só podem ser alcançados com essas medidas. O decreto dá efetividade à lei”.
Alexandre Calmon
Sócio da área de Energia e Recursos Naturais do Campos Mello Advogados em cooperação com DLA PiperEntre as associações, empolgação e silêncio
No setor energético, o novo decreto trouxe sentimentos mistos para associações e representantes da cadeia de produção e de consumo. A Associação Brasileira do Biogás (ABiogás) afirmou em nota que apoia a iniciativa Gás para Empregar e destacou pontos positivos, como a previsão de criação de um Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano.
“A infraestrutura de gás brasileira foi construída levando em consideração a produção de gás natural de origem fóssil e recebeu críticas por não interiorizar a oferta de gás, cuja demanda encontra-se em todo o território nacional. O biometano, por sua vez, está perto da demanda, pois é feito a partir de resíduos orgânicos do setor de saneamento e da agropecuária, que estão espalhados por todo o Brasil. O Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano vai considerar ambas as ofertas, e proporcionará o crescimento do mercado de gás, para além da costa nacional”, avalia a associação.
Já a ABRACE Energia, que representa grandes consumidores do setor elétrico, afirmou em nota que o regramento propõe ações para aumentar a oferta e a diversidade do mercado de gás natural e a competitividade do insumo, que é estratégico para a indústria. “Essa é uma oportunidade para definir claramente o papel da União na maximização da oferta nacional de gás natural, ao mesmo tempo em que empodera o regulador nas ações necessárias”, ressalta.
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Contudo, a visão positiva desses players sobre a medida considerada intervencionista não contagiou totalmente o setor. Pelo contrário: o segmento produtivo de óleo e gás recebeu com desconfiança e pessimismo a nova medida, mas adotou cautela antes de se posicionar. O Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), em contato com o VDE, decidiu que vai primeiro avaliar internamente com as empresas associadas o decreto publicado para só então decidir que tipo de comunicado irá fazer.
Empresas do setor produtivo, seguindo a linha do IBP, também optaram pelo silêncio publicamente. Nos bastidores, contudo, acreditam na pouca efetividade do decreto ou na alta judicialização, visto que a falta de cuidado em pensar nos contratos vigentes pode gerar longos embates nos tribunais.
Além disso, há um temor no mercado quanto à capacidade da ANP de receber as novas atribuições. A agência reguladora, que já passou a lidar com mais responsabilidades em 2021, com a edição da chamada Lei do Gás, possui um déficit considerável em seu quadro de funcionários. O último concurso público do órgão foi realizado em 2015 e ainda não há edital autorizando a contratação de novos servidores.