Regulação
Entre incertezas e especulações, o Brasil está em franca mobilização com vistas à instituição do mercado de carbono nacional. A principal proposta em tramitação – PL nº 182/2024 – sugere regulação dos mercados voluntário e compulsório com vistas à respectiva instituição de dois ativos transacionáveis: os Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs) e as Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs). Em conjunto, eles comporiam o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE).
As CBEs institucionalizariam, portanto, o mercado de carbono compulsório no Brasil, sujeitando todos os operadores responsáveis por instalações que emitam acima de 25.000 tCO2e/ano a um teto de emissões a ser regulamentado. Direto ao ponto, os agentes poluidores terão que ajustar a eficiência de emissão de suas atividades ou terão que comprar as permissões para emitir (nesse caso, as próprias CBEs). Em caso de inadimplência, a proposta prenuncia infrações e penalidades, que podem ser advertência, multa, publicidade, suspensão da atividade e restrição de direitos. Por isso, não é exagero dizer que a eventual instituição do mercado de carbono no Brasil impactará diretamente a dinâmica produtiva do país, impondo aos segmentos econômicos uma nova variável em sua competitividade.
Nesse cenário, este artigo indaga: considerando o desenho atual de mercado, bem como as particularidades do debate climático no Brasil e seu perfil socioeconômico, faz sentido incluir o setor elétrico brasileiro em eventual mercado de carbono compulsório?
Sobre a renovabilidade da matriz e a necessidade de despacho térmico
O caráter renovável da matriz elétrica brasileira sugere – haja vista o “trilema” do setor – constante necessidade de complementação termelétrica, fato que impede o país de prospectar um futuro para o setor elétrico nacional, ao menos no curto prazo, que desconsidere combustíveis fósseis.
A valer, que se percebe é um despacho sustentado pelas fontes hídricas, com expressiva participação da fonte eólica e crescente presença da fonte solar. Não obstante a alta volatilidade inerente à dinâmica de despacho, esse cenário elevou o Brasil ao patamar de 89,2% de participação de renováveis na matriz elétrica nacional no ano passado, quando o mundo registrou tão somente 28,7% em 2021 (EPE, 2024). Em suma, o Brasil já alcançou, em 2023, a meta vinculada ao net zero que o mundo almeja atingir em 2050 (Castro et. al, 2023).
A geração termelétrica é acionada porque o ONS ainda se vê obrigado a vislumbrar soluções para os casos em que as condições de produção de energia elétrica a partir das fontes renováveis (como as inconsistências de incidência de ventos e raios solares, a falta de chuva ou a ausência de uma tecnologia adequada de armazenamento) não desempenham conforme esperado. Simplificadamente, é dito que as fontes renováveis são “variáveis” ou “intermitentes”, isto é, não produzem de maneira linear ao longo do tempo, impedindo um despacho controlável. Na direção contrária, a geração termelétrica é controlável e, é utilizada somente quando a geração renovável – que ainda não possui tecnologias viáveis de armazenamento – não performa de forma a atender a demanda satisfatoriamente.
Na prática, os momentos de menor participação hídrica são acompanhados pela complementação da geração termelétrica no sistema. Foi o que aconteceu, mais recentemente, em 2021, quando o país atravessou uma significativa crise hídrica e registrou recordes de geração de energia termelétrica.
Conclusivamente, o alto grau de renovabilidade do setor elétrico nacional impede a prospecção de um futuro, ao menos no curto prazo, que desconsidere a geração termelétrica. Na verdade, a própria expansão adequada da geração renovável no país é assegurada pela geração termelétrica, o que torna esses atores complementares, e não excludentes. Este ponto, quando associado ao trilema do setor elétrico, é central para resumir a primeira reflexão deste artigo: diferentemente da maioria dos países do mundo, o setor elétrico brasileiro é um caso de sucesso internacionalmente reconhecido pela sua capacidade de priorização de geração renovável e complementação via geração térmica.
Sobre o perfil singular das emissões brasileiras de gases de efeito estufa
Diferentemente dos países desenvolvidos, que, em geral, pautam o debate climático no planeta, o Brasil não encontra nem no setor de energia, nem no setor elétrico seu maior desafio à descarbonização, especialmente por ostentar uma das matrizes energéticas e elétricas mais renováveis do mundo.
O que se nota, na realidade, é um protagonismo do segmento de “Mudança de Uso da Terra e Florestas” como principal emissor de GEEs do Brasil. Em 2022, ano com dados mais recentes, o setor concentrou 48,47% das emissões, seguido por “Agropecuária” (26,27%), “Energia” (17,88%), “Resíduos” (3,94%) e “Processos Industriais” (3,45%), nessa ordem. Se considerarmos a média do percentual verificado a cada ano, tal tendência torna-se ainda mais clara, com 56,85% das emissões originárias de “Mudança de Uso da Terra e Florestas”.
Aqui é possível registrar a segunda ponderação deste artigo: diferentemente da maior parte das economias que mais emitem no planeta – o setor energético não é o responsável central pela emissão desses gases no Brasil, mas sim as alterações de uso da terra dos biomas nacionais.
Sobre a pobreza energética e o caráter social do acesso à eletricidade no Brasil
Os significativos índices de pobreza energética no Brasil, aliados ao perfil do consumo de eletricidade no país e ao potencial impacto do preço da energia ao bem-estar dos brasileiros, conferem ao setor elétrico um viés único quando comparado aos demais setores passíveis de inclusão em eventual mercado de carbono regulado.
Embora o acesso à eletricidade, no Brasil, beire a universalidade – mais de 99% dos brasileiros têm alcance à energia elétrica (IBGE, 2022) – a discussão relativa ao bem no país precisa tratar não apenas da qualidade do serviço prestado, mas também do perfil do consumo (e seus impactos na renda dos brasileiros). É onde se encaixa a chamada “pobreza energética” – refletida no ODS 7 da Agenda 2030 (assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos). Bezerra et al.. (2022) concluíram que 11% das residências brasileiras vivem atualmente em condições de pobreza energética; nas áreas rurais, esse número chega a 16%. Esse cálculo também já havia sido feito por Poveda, Losekann e Silva (2021), que chegaram a números semelhantes: a proporção de domicílios em condição de pobreza energética é de 11,5%.
Famílias brasileiras com mais de 20 salários-mínimos de renda (1,8% dos domicílios com acesso à eletricidade) correspondem a 6,1% de todo consumo de energia elétrica, praticamente o mesmo montante de todas as famílias com renda até 1 salário mínimo (15,2% dos domicílios), que consomem 6,6% do total. Isso em um cenário em que as projeções da ANEEL indicam que as famílias pobres comprometem 20% da renda média mensal para pagar a conta de luz, enquanto as famílias ricas comprometem somente 3% dos seus proveitos com essa finalidade.
Quando analisamos as camadas mais pobres da população brasileira, a subcategoria climatização de ambientes perde representatividade percentual para conservação de alimentos e para o aquecimento de água, principalmente. Isso evidencia a ligação intrínseca entre acesso à eletricidade e segurança alimentar: em camadas familiares até 1 salário-mínimo, as subcategorias “conservação de alimentos”, “cocção de alimentos” e “preparação de alimentos” correspondem a 40,7% do uso final da eletricidade.
Direto ao ponto, garantir a acessibilidade à energia elétrica, no Brasil, também significa garantir melhores oportunidades sanitárias para o combate à fome. Esta realidade ressoa em algumas pesquisas de campo já realizadas no Brasil. Em uma delas (IPEC, 2021), 30% dos entrevistados de famílias de baixa renda declararam reduzir ou deixar de comprar alimentos básicos para pagar a conta de luz. As múltiplas conclusões resumidas nesta seção reforçam o caráter social da energia elétrica no Brasil, pautando o tema como uma importante consideração para estabelecer políticas públicas no setor.
Considerações Finais
Por um lado, não há dúvidas de que um mercado compulsório de carbono afetará, ao menos no curto prazo, os custos dos setores a eles submetidos. Por outro lado, também está claro que o setor elétrico brasileiro – de matriz extremamente renovável e cujas emissões correspondem a menos de 1% do total nacional – depende da geração de combustíveis fósseis para garantir segurança ao fornecimento de energia.
Estes pontos, quando analisados em conjunto com a eletrificação da economia e o caráter social do acesso à eletricidade, engendram a justificativa central para o diferimento no tratamento deste segmento em caso de eventuais políticas públicas de regulação de emissões no país: se o mercado compulsório representar um sobrecusto para o setor, ele será repassado de forma mais onerosa às camadas mais pobres da população brasileira.
Por isso, ainda que os riscos envolvendo a situação climática global sejam urgentes e incontestáveis, suas causas variam de país para país e – como tal – seus remédios também podem variar. Se o mercado de carbono compulsório é funcional ao dilema europeu, no Brasil ele não necessariamente se adequa como escolha ótima para todos os setores. É o quadro do setor elétrico brasileiro.