Regulação

GÁS NÃO CONVENCIONAL: OPORTUNIDADES E DESAFIOS PARA O BRASIL

Explorado há 30 anos nos Estados Unidos, shale gas enfrenta no Brasil barreiras ambientais e insegurança jurídica

Redação
COMPARTILHE:

Enquanto o mundo avança em uma revolução energética impulsionada pelo shale gas, o Brasil, detentor de vastas reservas de gás não convencional, ainda enfrenta um cenário de incertezas e barreiras que impedem o desenvolvimento desse recurso estratégico. No momento em que nações como os Estados Unidos e a Argentina colhem benefícios significativos, o Brasil continua preso em um emaranhado burocrático e uma governança ambiental que precisa de ajustes urgentes. O país se vê diante de um paradoxo energético: dono de imensas reservas, mas dependente de importações de gás natural.

No contexto desse debate, a presidente da Associação Brasileira de Geólogos de Petróleo (ABGP), Carla Araujo, reforça a importância de investigações geológicas mais aprofundadas no país. “A ABGP realizou, em junho de 2024, o Workshop sobre Fraturamento Hidráulico: Fatos e Dados, com o objetivo de aprofundar esta discussão. As apresentações destacaram o conhecimento tecnológico acumulado ao longo das últimas quatro décadas e a maneira segura como a técnica de fraturamento hidráulico vem sendo realizada em larga escala, especialmente nos Estados Unidos”, afirmou Carla.

Ela também destacou que, embora a prospectividade das bacias intracratônicas brasileiras não seja diretamente comparável às das bacias produtoras de shale gas dos Estados Unidos e da Argentina, é crucial que o Brasil invista em investigações geológicas básicas para avaliar o real potencial de produção de seus reservatórios. “A avaliação do potencial de produção de gás no Brasil é uma questão relevante no contexto da transição para uma matriz energética mais limpa e deve ser debatida em fóruns técnico-científicos para garantir informações de qualidade à sociedade”, completou Carla.

Essa necessidade de investir em pesquisas geológicas reflete a urgência de o Brasil entender e aproveitar melhor o seu potencial energético. Com reservas estimadas em 514 trilhões de pés cúbicos (TCF, na sigla em inglês) de gás não convencional, o país ainda não avança devido à fragmentação regulatória e à falta de uma política clara para a exploração desses recursos.

"A avaliação do potencial de produção de gás no Brasil é uma questão relevante no contexto da transição para uma matriz energética mais limpa”

Carla Araujo

Presidente da Associação Brasileira de Geólogos de Petróleo (ABGP)

A revolução energética global e o papel do shale gas

A produção de gás não convencional mudou drasticamente o cenário energético global nas últimas décadas. O primeiro poço de gás não convencional foi perfurado nos Estados Unidos em 1821, mas foi somente nas décadas de 1970 e 1980 que a combinação de duas tecnologias – fraturamento hidráulico (fracking) e perfuração horizontal – tornou economicamente viável a extração em grande escala.

Essas inovações permitiram aos Estados Unidos alcançar a autossuficiência energética e transformaram o país no maior produtor mundial de gás natural e um dos maiores de petróleo. A produção de shale gas, que representava apenas 1% do total em 2000, hoje é responsável por cerca de 78% da produção de gás natural nos Estados Unidos. Atualmente, o país produz 2,93 bilhões de metros cúbicos de gás por dia e 13 milhões de barris de petróleo, com impactos profundos na economia e segurança energética.

No Brasil, a produção de gás natural, em comparação, é de 140 milhões de metros cúbicos por dia e a de petróleo, 3 milhões de barris diários. Cerca de 40% do gás produzido no Brasil é reinjetado, o que reflete as limitações estruturais e de mercado para aproveitamento completo desse recurso.

O contexto brasileiro: potencial, desafios e contradições

O Brasil possui um dos maiores potenciais de gás não convencional do mundo, com reservas estimadas em 514 TCF (trilhões de pés cúbicos), distribuídas em diversas bacias sedimentares. Para se ter uma ideia, os Estados Unidos possuem reservas de 623 TCF, a Argentina 802 TCF, a China 1.115 TCF e o Canadá 573 TCF. Apesar desse vasto potencial, o Brasil segue dependente de importações de GNL, muitas vezes provenientes dos próprios Estados Unidos.

As principais bacias brasileiras incluem a Bacia do Paraná, com 226 TCF, a Bacia do Parecis, com 124 TCF, e a Bacia do São Francisco, com 80 TCF, todas com grande potencial de desenvolvimento. Contudo, o país ainda não conseguiu avançar na exploração desses recursos devido a um sistema regulatório fragmentado e uma governança ambiental confusa.

O Paradoxo Brasileiro: potência energética dependente de importações

O paradoxo brasileiro é evidente: enquanto o país possui grandes reservas de gás não convencional, continua importando gás natural liquefeito (GNL), inclusive do shale gas produzido nos Estados Unidos. Além disso, o país estuda a importação de gás da Argentina, que, desde 2011, avança na exploração da formação de Vaca Muerta, enquanto o Brasil segue preso em questões regulatórias e ambientais.

De acordo com dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o Brasil possui reservas provadas de gás natural convencional de cerca de 13 TCF (aproximadamente 370 bilhões de metros cúbicos), o que coloca em evidência a falta de exploração de seus recursos não convencionais.

Barreiras regulatórias e propostas de solução

O licenciamento ambiental no Brasil é considerado uma “jabuticaba”, fragmentado entre os órgãos estaduais e federais, o que cria insegurança jurídica para investidores. Na fase de exploração, o processo é conduzido pelos estados. No entanto, na fase de produção, o processo passa para o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), criando um ciclo de incerteza, pois não há garantias de que a licença de exploração resulte em autorização para produção.

Recentemente, o Ministério de Minas e Energia (MME) propôs a revisão do decreto de 2015 que regulamenta o licenciamento ambiental para projetos de gás não convencional, buscando transferir a competência para os estados, a fim de simplificar o processo e atrair investimentos. Contudo, esse debate se arrasta há mais de uma década, sem avanços significativos.

O MME, em nota, reiterou seu compromisso em revisar e aperfeiçoar o processo de licenciamento para garantir mais segurança e atratividade para investidores em relação ao licenciamento ambiental de projetos de gás não convencional. 

Impactos Econômicos: exemplos de sucesso e oportunidades para o Brasil

Os Estados Unidos, a Argentina, o Canadá e a China colhem os frutos econômicos da exploração de gás não convencional. De acordo com o relatório da IHS Global Insight, em 2021, o shale gas nos Estados Unidos gerou mais de 600 mil empregos diretos e indiretos, além de contribuir com mais de 100 bilhões de dólares em impostos e royalties

O Energy Outlook 2023, da Agência de Informação de Energia dos Estados Unidos (EIA), mostra que a exploração de shale gas gerou investimentos acumulados de mais 1 trilhão de dólares. Isso inclui gastos em perfuração, infraestrutura, desenvolvimento tecnológico e expansões necessárias para a produção em larga escala​, impulsionando o crescimento de diversas indústrias associadas. A reindustrialização impulsionada pela energia barata também revitalizou economias locais e nacionais.

“A independência energética do Brasil em gás natural poderá vir de reservatórios não convencionais do Nordeste e Centro-Oeste”

Marcio Felix

Presidente da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo (Abpip)

O Brasil, com suas reservas, poderia seguir um caminho semelhante, gerando empregos, aumentando a arrecadação e promovendo um processo de reindustrialização. Para Marcos da Costa Cintra, presidente do Instituto Pensar Energia, o gás não convencional tem o potencial de tornar o preço da molécula mais competitivo, impulsionando um processo de fortalecimento da indústria, viabilizando a produção de fertilizantes no Brasil e fortalecendo a segurança energética do país. Isso, segundo ele, contribuiria diretamente para a segurança alimentar do Brasil, que atualmente importa 80% de seu consumo de fertilizantes. “Não podemos perder essa janela de oportunidade”, diz Cintra.

A Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo (Abpip) aponta que o gás não convencional pode revitalizar a indústria de óleo e gás onshore, modernizando a infraestrutura e reduzindo a dependência de importações. “A independência energética do Brasil em gás natural poderá vir de reservatórios não convencionais do Nordeste e Centro-Oeste”, afirma Marcio Felix, presidente da entidade. 

Segurança Ambiental: práticas consagradas e tecnologias de mitigação

As preocupações ambientais, frequentemente levantadas por organizações não-governamentais, também precisam ser consideradas. No entanto, estudos da Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos e de outras agências internacionais demonstram que, quando realizadas com regulamentações rigorosas, as técnicas de fraturamento hidráulico (fracking) e a cimentação dupla dos poços são seguras e eficazes na proteção dos aquíferos. A profundidade das operações de shale gas – milhares de metros abaixo dos lençóis freáticos – minimiza os riscos de contaminação.

A técnica de fracking foi aplicada em mais de 1,7 milhões de poços nos Estados Unidos, sem incidentes ambientais graves, o que reforça a viabilidade dessa exploração com os devidos cuidados.

Conclusão: oportunidade estratégica perdida

O Brasil está perdendo uma janela de oportunidade crucial para desenvolver suas reservas de gás não convencional. A ausência de uma política clara e a fragmentação do licenciamento ambiental afetam a confiança dos investidores e impedem que o país avance na segurança energética. Enquanto o mundo explora seus recursos de maneira estratégica, o Brasil permanece preso a barreiras burocráticas, correndo o risco de ficar para trás.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) tem uma posição favorável ao desenvolvimento de shale gas como um caminho para fortalecer a competitividade industrial e reduzir a dependência do gás importado. A instituição defende que, com uma regulamentação adequada, o shale gas poderia contribuir para a retomada do crescimento industrial no Brasil. O Banco Mundial apoia o desenvolvimento do shale gas como uma estratégia para promover a segurança energética e o crescimento econômico sustentável. Ele incentiva os países a investir em tecnologias e práticas que minimizem os impactos ambientais da exploração de shale gas

A Agência Internacional de Energia (IEA) defende que a exploração de gás não convencional desempenha um papel importante na segurança energética global, especialmente durante a transição para fontes de energia mais limpas. A IEA também destaca que o desenvolvimento do shale gas pode ser uma “ponte” para uma economia com menos emissões de carbono, desde que as regulamentações ambientais sejam rigorosas.

Confira os conteúdos da série de governança ambiental:

Projetos estratégicos são barrados pelo licenciamento ambiental

Série de reportagens

Esta matéria faz parte de uma série de reportagens sobre governança ambiental e seus impactos no setor de energia e infraestrutura, com o objetivo de analisar os desafios e as oportunidades que o Brasil enfrenta na busca por um desenvolvimento sustentável. As reportagens abordam desde questões relacionadas a regulamentações e propostas legislativas, como a PEC 13, até os obstáculos práticos para viabilizar projetos estratégicos em diversas áreas. A série busca proporcionar uma visão abrangente sobre o licenciamento ambiental no país, destacando as implicações econômicas, sociais e ambientais das decisões regulatórias.

Se você percebeu erro no texto, nos ajude e melhorar. Desde já agradecemos sua participação. Clique aqui.

    ERRAMOS: Se você percebeu erro no texto, nos ajude e melhorar. Desde já agradecemos sua participação.

    Leia também