Foto: Instituto Pensar Energia/Divulgação
Políticas públicas

CRISE ENERGÉTICA À VISTA REQUER PLANEJAMENTO ESTRUTURAL

Presidente do Instituto Pensar Energia, Marcos Cintra, alerta sobre o desafio do modelo atual do sistema elétrico brasileiro, que está no limite e sem folga para imprevistos

Marcos Cintra
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O Plano de Expansão da Energia (PEN) 2024, recentemente divulgado, trouxe à tona um cenário desafiador para o futuro do sistema elétrico brasileiro. O Operador Nacional do Sistema (ONS) alerta que a necessidade de uso da reserva operativa, um recurso de segurança acionado apenas em momentos críticos, pode se tornar inevitável já no final de desse ano e início de 2025, com risco maior em março devido à variabilidade hidrológica e outras incertezas. Isso evidencia que estamos diante de um sistema operando no limite, sem folga para imprevistos. Esse quadro de vulnerabilidade precisa ser debatido de maneira séria e profunda, considerando que o aumento de fontes intermitentes, como solar e eólica, exige um planejamento mais robusto e coordenado, o que falta no cenário atual.

Os números projetados pelo ONS para os próximos anos são ainda mais preocupantes: as probabilidades de perda de carga, ou seja, a incapacidade do sistema de suprir toda a demanda de energia, chegam a níveis insustentáveis. Em 2026, a perda de carga está estimada em 12%; em 2027, atinge 19%; e, em 2028, impressionantes 34%, muito acima do limite de 5% considerado aceitável. Esses dados indicam que o país corre o risco de enfrentar apagões e interrupções significativas no fornecimento de energia, o que, além de impactar o dia a dia de milhões de consumidores, também pode desacelerar o crescimento econômico. Diante desse cenário, há uma oportunidade importante para evoluirmos para um planejamento mais coordenado e assertivo, que vá além do modelo indicativo atual e contemple as necessidades futuras do sistema.

A matriz energética brasileira, embora diversificada, ainda depende fortemente da hidreletricidade, que sofre cada vez mais com as incertezas climáticas, como secas prolongadas e variações de precipitação. Paralelamente, o Brasil tem avançado na incorporação de fontes renováveis intermitentes, como a energia eólica e solar, o que é positivo para a diversificação e a sustentabilidade. No entanto, essas fontes, por sua própria natureza, trazem novos desafios para o sistema, que precisa lidar com a sua variabilidade e garantir segurança de fornecimento nos momentos em que o vento não sopra e o sol não brilha. O planejamento energético brasileiro, que historicamente operava sob uma lógica mais simples, enfrenta agora uma nova realidade, cada vez mais complexa e interconectada.

Esse cenário exige uma revisão profunda da governança e da capacidade de planejamento do Estado brasileiro. O modelo atual de planejamento indicativo não parece mais suficiente para lidar com os desafios que se avolumam.

Marcos Cintra

Presidente do Instituto Pensar Energia

Esse cenário exige uma revisão profunda da governança e da capacidade de planejamento do Estado brasileiro. O modelo atual de planejamento indicativo não parece mais suficiente para lidar com os desafios que se avolumam. A complexidade crescente do sistema, impulsionada pela integração de fontes intermitentes e pela necessidade de manter a segurança de fornecimento, exige um planejamento mais assertivo e coordenado. Seria oportuno o Estado assumir um papel mais central no fortalecimento da governança do setor, coordenando de forma mais eficaz políticas integradas de geração, transmissão e distribuição de energia, com diretrizes claras e de longo prazo, que garantam tanto a expansão da capacidade quanto a flexibilidade necessária para lidar com as flutuações na oferta de energia.

Uma das soluções passa pela modernização da governança do setor elétrico, com a criação de uma agência de energia que centralize as decisões e coordene de maneira mais eficiente as políticas de geração, transmissão e distribuição de energia. Além disso, o fortalecimento do Operador Nacional do Sistema (ONS), conferindo-lhe a responsabilidade não só pela operação da transmissão elétrica, mas também pela gestão dos gasodutos, seria um avanço importante. O ONS poderia ainda assumir funções mais amplas, como o planejamento integrado do sistema e a liquidação de contratos tanto de energia elétrica quanto de gás natural, o que permitiria uma visão mais ampla e coordenada de toda a infraestrutura energética do país.

Outra medida crucial seria ampliar os investimentos em tecnologias que aumentem a confiabilidade e flexibilidade do sistema, como a construção de usinas térmicas e outras soluções de armazenamento de energia, incluindo baterias e o resgate das hidroelétricas com reservatório. Essas soluções podem servir como backup para as fontes intermitentes, garantindo um fornecimento estável de energia mesmo nos momentos de maior pressão sobre o sistema. Além disso, a expansão da rede de transmissão é fundamental para garantir que a energia gerada em regiões com grande potencial renovável, como o Nordeste, chegue aos centros consumidores com eficiência, algo que tem onerado a conta do consumidor. Outra saída seria o deslocamento de projetos energointensivos para a região, como os datacenters.

A crise projetada para os próximos anos não pode ser enfrentada apenas com soluções paliativas ou improvisadas. O Brasil precisa de um planejamento estratégico de longo prazo, que envolva todos os atores do setor e esteja alinhado com as tendências globais de transição energética e sustentabilidade. O Estado, nesse contexto, precisa reassumir um papel de liderança e coordenação, garantindo que as decisões sejam tomadas com base em critérios técnicos sólidos e com visão de futuro.

O PEN 2024 é um sinal de alerta que não pode ser ignorado. O Brasil enfrenta desafios sem precedentes em seu setor elétrico, que vão desde a volatilidade climática até a crescente complexidade de sua matriz energética. Para enfrentar esses desafios, é urgente reforçar a capacidade de planejamento e governança do Estado, garantindo a segurança energética e a sustentabilidade do desenvolvimento econômico. O PEN 2024 é um convite ao diálogo e à ação conjunta entre todos os envolvidos no setor, para que possamos garantir a segurança energética e o desenvolvimento sustentável do país.

Marcos Cintra é executivo do setor de petróleo, gás e energia. Jornalista pela Unicap, mestre em políticas públicas pelo IE-UFRJ e doutor em energia pelo IEE-USP, é presidente do Instituto Pensar Energia.

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