Foto: Gilmar Félix / Câmara dos Deputados
Transição Energética

GERAÇÃO SOLAR DESAFIA PLANEJAMENTO ENERGÉTICO, DIZ ESPECIALISTA

Em entrevista, ex-diretor do ONS Luiz Carlos Ciocchi traz pontos importantes para se considerar nas perspectivas de longo prazo do sistema elétrico, como a mini-geração solar distribuída

Redação
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A geração distribuída de energia solar, especialmente em residências, tem se mostrado uma solução promissora para diversificar a matriz energética, mas, segundo o engenheiro Luiz Carlos Ciocchi, ex-diretor geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), traz desafios significativos ao planejamento de longo prazo do setor elétrico. Embora seja uma inovação positiva, a expansão descontrolada da mini-geração distribuída pode comprometer a previsibilidade do sistema e gerar complicações operacionais.

Ciocchi alerta que a falta de controle sobre a instalação de painéis solares nas residências dificulta o planejamento da infraestrutura de transmissão, necessária para absorver e redistribuir o excedente de energia. Além disso, o caráter intermitente da geração solar complica a previsão e a necessidade de inserção de outras fontes de energia que garantam a segurança do abastecimento, especialmente em momentos de variações de carga.

“Trata-se de um paradigma muito distinto do que tradicionalmente trabalhamos ao longo da história da eletricidade, tanto no Brasil quanto no mundo. É um desafio global para operadores e planejadores de sistemas elétricos,” afirmou Ciocchi, em entrevista ao VDE.

Com mais de 40 anos de experiência nos setores de energia, infraestrutura e capital intensivo, o especialista reforça que, mesmo com o avanço das renováveis, os combustíveis fósseis ainda desempenharão um papel relevante no cenário global, particularmente no setor de transporte. “Mesmo em países como o Brasil, com uma matriz energética predominantemente limpa, as fontes despacháveis continuam sendo essenciais para equilibrar as variações das fontes intermitentes, como a solar e a eólica,” ressaltou.

Ciocchi, que possui especializações em gestão e governança por universidades dos Estados Unidos e tem uma carreira consolidada como consultor e conselheiro em grandes projetos do setor elétrico, também expressou ceticismo em relação ao retorno do horário de verão. Segundo ele, o impacto econômico é mínimo, enquanto os prejuízos à qualidade de vida são consideráveis.

Ao comentar sobre a implantação do mercado livre no Brasil, Ciocchi se posiciona a favor da expansão do sistema, mas alerta que os consumidores não devem se iludir quanto à redução de custos. O modelo atual ainda apresenta distorções, onde os subsídios para alguns segmentos são absorvidos pelo consumidor cativo, tornando a transição desafiadora.

Confira abaixo a entrevista.

Quais os desafios para um adequado planejamento do setor energético do Brasil no contexto da transição energética?

A transição energética como estamos vivenciando aqui no Brasil é muito marcada pela maciça inserção de energias intermitentes. Começamos fortemente com a eólica e, agora mais recentemente, com a solar fotovoltaica, tanto geração centralizada solar fotovoltaica quanto a micro e mini geração distribuída, com painéis solares instalados em casas. Esse é um crescimento de geração que nenhum país tem controle. Isso não é planejado, ninguém tem autorização para colocar esse tipo de gerador. Portanto, esse crescimento é orgânico e depende das condições de mercado, das facilidades, disponibilidade de agentes, de infraestrutura. 

Esse tipo de geração vem crescendo no Brasil de forma bastante significativa. É muito bom, óbvio, pois é uma fonte limpa, renovável e competitiva do ponto de vista de preço. No entanto, quando se fala em planejamento do setor energético, o máximo que se consegue fazer é ver o que já foi feito e fazer alguma previsão de como isso vai crescer. Isso é muito diferente de um planejamento energético centralizado e baseado em energias despacháveis, ou seja, grandes usinas hidroelétricas e termoelétricas. Essa é o desafio para o planejamento energético nesta fase que estamos vivendo, de transição, e traz implicações como a necessidade de, posteriormente, planejar linhas de transmissão e em outras fontes que tragam segurança no abastecimento.

Essa situação é caracterizada exatamente pelas características, pelo tipo, pelos atributos das fontes intermitentes, que são boas e desejáveis. Contudo, do ponto de vista de planejamento, é um paradigma muito diferente daquele que vínhamos acostumados a trabalhar ao longo da história toda da energia elétrica no mundo. Não é um desafio enfrentado apenas pelo Brasil, mas por todos os países, operadores e planejadores de energia elétrica no mundo. 

“O importante é não vender a ilusão de que o mercado livre vai trazer uma diminuição de preço de tarifa muito significativa”

Luiz Carlos Ciocchi

Ex-diretor geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)

Qual o papel das fontes fósseis nesse cenário?

As fontes fósseis, tal qual a energia das hidroelétricas, têm a característica de serem despacháveis. Como operador, posso pedir para aumentar ou para diminuir, para entrar uma máquina a mais ou tirar uma máquina da geração. Essa característica dessas fontes despacháveis permite ao operador do sistema fazer essa modulação, acompanhar a carga e o que está sendo gerado. A energia elétrica é um produto que tem que ser gerada e consumida naquele momento e exatamente naquela quantidade. Essa flexibilidade é um atributo bastante importante para os operadores de sistemas elétricos e é exatamente o que trazem as fontes fósseis e as hidroelétricas com reservatório.

Qual a tendência de uso de combustíveis fósseis para os próximos anos?

Muito se repete o lugar comum de que “a idade da pedra não terminou por falta de recursos e que a era do petróleo não termina pela falta do petróleo”. O petróleo está aí. Ele existe e ainda vai permanecer bastante tempo na nossa vida, não só nas questões de geração de energia elétrica, mas enfim, para suprir outras necessidades de nossa sociedade.

O grande consumidor de petróleo e combustíveis fósseis hoje está na área de transporte e acredito que durante muito tempo ainda vamos depender desses combustíveis. Os avanços tecnológicos estão sendo bastante significativos, a geração de energia elétrica está realmente mudando de patamar em todo o mundo, para uma geração que não dependa de combustíveis fósseis. No entanto, mesmo em países como o Brasil, com uma matriz já bastante limpa, percebemos que a necessidade das energias despacháveis para fazer frente às variações de carga das fontes intermitentes, como eólica e solar fotovoltaica, ainda é uma necessidade.

As duas formas de se controlar isso é com a energia hidráulica com reservatório e as termoelétricas despacháveis por combustível fóssil. É importante entender isso, de que produzimos a quantidade de energia térmica necessária e suficiente para fazer essa modulação no atendimento à carga, no atendimento à demanda de energia. Portanto, eu creio que ainda, por muitos anos, os combustíveis fósseis estarão presentes na nossa matriz de geração elétrica e na vida das pessoas, na sociedade, nas áreas de transporte e na indústria. Isso vai mudar? Está mudando? Sim, está mudando. 

Existe uma consciência global de que isso precisa ser alterado, mas não é algo que se faz em alguns anos. Todas as grandes transições energéticas que tivemos ao longo da história foram contadas em décadas. Parece que estamos atrasados nessa corrida, mas não dá para ser muito mais rápido, ou fazer esse processo de forma mais brusca do que vem sendo feito no mundo todo. Tal qual outros assuntos, esse é um problema global em que a solução só vem de forma também global. É uma longa jornada em que devemos estar preparados e fazendo aquilo que pode e deve ser feito, com a celeridade que o assunto requer.

Como avalia a condução da medida de horário de verão neste momento?

No Brasil, todos os anos queremos discutir esse assunto e, enfim, nos últimos anos, mostrou-se que, mesmo tendo uma economia de energia, essa economia de energia não é a salvadora da pátria, ela não muda significativamente o cenário da energia. Pode ter algum efeito novo este ano que esteja sendo trazido pela maior inserção da energia solar fotovoltaica? Eu acredito que sim, mas não acredito que seja uma economia muito grande. 

Não consigo ver como essa economia vai ser tão significativamente positiva assim. O horário de verão traz prós e contras, benefícios e malefícios para vários setores e depende muito do gosto de cada pessoa. Tem gente que gosta, tem gente que não gosta. Setores como o de lazer, turismo, bares e restaurantes gostariam que essa medida fosse adotada, pois aumentaria a arrecadação e os impostos. Outros setores como transportes, com mudanças das agendas de voos, por exemplo, e escolar, com gente que acorda muito cedo e que não consegue se adaptar devido ao seu ritmo biológico, são contrários. 

Essa é uma decisão que deveria ser tomada independentemente do fator de economia da energia elétrica. Deveria respeitar a cultura dos países, como a gente vê hoje na Europa. Na Europa, o horário de verão já está bastante consolidado. No Brasil, retornar a esse assunto todo ano causa uma certa ansiedade, né? Todo ano a gente está fazendo estudos e fazendo cálculos e vendo se economiza. Não vejo isso como uma prática sustentável. 

Que fatores precisam ser considerados no desenvolvimento do mercado livre no país?

O mercado livre de energia é um assunto que está sendo bastante discutido, em que estamos procuramos aprender com a experiência de outros países. Em outros mercados, por exemplo, você pode comprar essa energia de alguma outra fonte, de alguma outra empresa, e essa energia trafega pelos fios, a distribuidora é remunerada por um fio que leva energia até a sua casa, até a sua empresa, até o seu empreendimento. Então, você tem essa conta, você paga pela energia e pela infraestrutura que foi montada pela distribuidora. 

O importante é não vender a ilusão de que o mercado livre vai trazer uma diminuição de preço de tarifa muito significativa. A diminuição do preço dessa tarifa que existe hoje para aqueles que optaram pelo mercado livre foi uma condição criada como incentivo para que os grandes consumidores de energia pudessem começar nessa modalidade. Vender o mercado livre como a solução, a panaceia, o Ovo de Colombo que vai resolver todos os problemas, e todos os brasileiros vão ter acesso a esse mercado e esse preço vai cair, é uma ilusão. Não podemos vender essa ilusão e fazer com que todo mundo acredite que aderir ao mercado livre vai reduzir a conta imediatamente

O mercado livre de energia é, sim, um progresso bastante significativo, mas devemos pensar em todos os outros componentes desse mercado, inclusive os aspectos legais, jurídicos e regulatórios, para a correta remuneração de todos os elos dessa cadeia e para que isso não seja visto como a solução final de todos os problemas do setor elétrico. Sabemos que há distorção no sistema, com excesso de incentivos que não são cobrados dos consumidores do mercado livre. Essa distorção precisa ser revisada com atenção para que não desestruturemos toda a cadeia produtiva do setor elétrico, que foi desenhada tendo a distribuidora de energia como ponto, o elo de contato com o consumidor, o elo arrecadador, no qual se concentra a arrecadação dos recursos e que conseguem alimentar todos os outros demais elos, ou seja, a transmissão e a geração de energia.

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